HISTÓRIA DA TEOLOGIA CRISTÃ - Parte 29



O Desenvolvimento do Cânon

Embora muitos escritos judaicos existissem nos tempos de Jesus e dos apóstolos, o cânon das Escrituras hebraicas era relativamente fixo e claro. Depois da destruição do templo em Jerusalém no ano 70, procurou-se reformar o judaísmo de modo que pudesse continuar existindo. Uma parte desse processo foi definir formalmente as escrituras inspiradas do judaísmo. A Bíblia hebraica ficou definida com vinte e dois livros inspirados: desde o Pentateuco até os Profetas Menores.

Nas Bíblias cristãs posteriores, alguns livros do cânon judaico foram subdivididos, perfazendo um total de trinta e nove livros. A versão grega das Escrituras hebraicas, chamada “septuaginta” (LXX), continha todos eles, bem como alguns livros escritos depois de Malaquias, chamados de interbíblico ou apócrifos. A maioria dos primeiros pais da igreja no século II empregava a LXX, assim como Paulo e outros apóstolos. Mas, para fazer suas citações, quase sempre usavam os vinte e dois livros canônicos e raramente os livros históricos e apócrifos posteriores. A maioria dos primeiros cristãos aceitavam os trinta e nove livros.

Na época de Clemente de Roma e dos demais pais apostólicos, as cartas dos apóstolos e os evangelhos considerados de autoria dos apóstolos, ou de seus colegas mais íntimos, foram reunidos e chamados “apóstolos”, justapondo-os com os “Profetas” da Bíblia hebraica. Sendo assim, já antes do ano 200, vários pais e bispos da igreja estavam se referindo a uma coletânea de escritos inspirados e autorizados conhecidos por “os Profetas e os Apóstolos” e tratando essa massa amorfa como um critério e norma de verdade para a fé e prática cristãs. Todavia, ainda não havia nenhum equivalente cristão da Bíblia hebraica que tivesse o reconhecimento oficial ou fosse unanimemente aceito.

Supõe-se que a igreja deve muita coisa a um herege chamado Marcião, um mestre cristão de grande influência em Roma. Apesar da longa distancia geográfica que separava os contemporâneos Marcião de Montano, eles tinham características em comum. Embora a teologia de Marcião estivesse mais próxima a algumas formas de gnosticismo, da mesma forma que a de Montano, Marcião considerava que a igreja necessitava de uma reforma urgente e pôs mãos à obra, tentando redescobrir e promover o que considerava o ensino verdadeiro e original de Jesus.

Marcião acreditava que seria necessário remover do cristianismo todos os vestígios do judaísmo, inclusive a Bíblia hebraica e Iavé. Para ele, o Antigo Testamento não tinha a mínima validade para os cristãos e o Deus descrito nele era um semideus tribal sanguinário que não merecia a adoração ou culto dos cristãos. As semelhanças entre Marcião e o gnosticismo aparecem na sua ideia de que Iavé criou, erradamente, a matéria, e que esta é a origem do mal. Para Marcião, Iavé era mais demoníaco que divino.

Talvez Marcião tenha sido o primeiro cristão que tentou definir um cânon cristão das Escrituras e quis limitá-lo aos escritos dos apóstolos que considerava livres de qualquer vestígio do judaísmo. Sua Bíblia constituía-se de duas partes: uma versão editada do evangelho segundo Lucas e dez epístolas paulinas.

Marcião e sua versão antijudaica das Escrituras tiveram rápida aceitação entre alguns cristãos. Igrejas marcionitas foram surgindo em Roma, Cartago e outras cidades. Os pais e bispos da igreja o atacaram com severidade. “Contra Marcião” de Tertuliano é um exemplo da polêmica cristã antimarcionista. Ireneu, também, criticou Marcião e seus ensinos em “Contra heresias”, e outros pais da igreja dos séculos II e III fizeram o mesmo. Alguns cristãos da antiguidade o consideravam como o arqui-herege e principal inimigo do cristianismo ortodoxo e católico. Apesar disso, o marcionismo sobreviveu em toda parte do império até terem suas igrejas fechadas pelos primeiros imperadores cristãos.

Por volta de 170, a igreja cristã de Roma reagiu com o “Cânon Muratório”. Este alistava os quatro evangelhos, Atos e os demais livros contidos no Novo Testamento, conforme a definição que existe ainda hoje, exceto Hebreu, Tiago e 1 e 2 Pedro. Incluía ainda, A Sabedoria de Salomão, mas excluía o popular e influente “O Pastor de Hermas”. Tal Cânon representa um passo crucial no desenvolvimento da vida organizacional da igreja. Embora sua lista não seja a da versão definitiva, contribui para o pensamento cristão ficar tomado pela ideia de uma Bíblia cristã e deixou claro que não excluiria as Escrituras hebraicas, nem estaria aberta para incluir toda e qualquer nova profecia ou escrito supostamente inspirado.

Sempre ouve debates a respeito dos critérios usados para basear e reconhecer certos escritos como autorizados e inspirados. Os livros e as cartas precisavam ser produtos do cristianismo primitivo, amplamente reconhecidos por todas as igrejas cristãs como uma reflexão da autoridade apostólica e como uma apresentação de verdades importantes para a salvação e o viver cristão.

Como comentado em postagens anteriores, os pais da igreja, como Ireneu, Tertuliano e Orígenes, criaram suas listas de Escrituras cristãs que, de certa forma, variavam um pouco do Cânon muratório e entre si. Todavia, apesar das diferenças, suas listas apresentavam muitas coincidências.

Os principais debates giravam em torno de Hebreus, 1 e 2 Pedro, Judas, 3 João, Apocalipse, Tiago, O Didaquê, O Pastor de Hermas e a Epístola de Barnabé. Paulatinamente houve o consenso de que todos os escritos da primeira lista – de Hebreus a Tiago – deviam ser incluídos por causa de seu amplo uso em todas as igrejas cristãs e por causa de sua ligação com os apóstolos. Judas foi aceito finalmente, segundo parece, somente por causa da tradição amplamente aceita de que o autor seria irmão de Jesus.

Os passos finais do processo formal de canonização e criação do Novo Testamento foram dados no século IV. Dois sínodos foram convocados na África do Norte: Hipona (393) e Cartago (397). Ambos aprovaram a lista de Atanásio como definitiva e autorizada.

A insensatez de julgar que o Deus do Antigo Testamento não é o mesmo Deus do Novo Testamento anula o entendimento humano para esta e outras passagens: “E, não achando o seu corpo, voltaram, dizendo que também tinham visto uma visão de anjos, que dizem que ele vive. E alguns dos que estavam conosco foram ao sepulcro, e acharam ser assim como as mulheres haviam dito; porém, a ele não o viram. E ele lhes disse: Ó néscios, e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura não convinha que o Cristo padecesse estas coisas e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, e por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as Escrituras” (Lc 24:23-27).

Que o Senhor nos abençoe e nos guarde.
Monteiro

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