O Desenvolvimento do Cânon
Embora muitos escritos judaicos existissem nos tempos de
Jesus e dos apóstolos, o cânon das Escrituras hebraicas era relativamente fixo
e claro. Depois da destruição do templo em Jerusalém no ano 70, procurou-se
reformar o judaísmo de modo que pudesse continuar existindo. Uma parte desse
processo foi definir formalmente as escrituras inspiradas do judaísmo. A Bíblia
hebraica ficou definida com vinte e dois livros inspirados: desde o Pentateuco
até os Profetas Menores.
Nas Bíblias cristãs posteriores, alguns livros do cânon
judaico foram subdivididos, perfazendo um total de trinta e nove livros. A
versão grega das Escrituras hebraicas, chamada “septuaginta” (LXX), continha
todos eles, bem como alguns livros escritos depois de Malaquias, chamados de
interbíblico ou apócrifos. A maioria dos primeiros pais da igreja no século II
empregava a LXX, assim como Paulo e outros apóstolos. Mas, para fazer suas
citações, quase sempre usavam os vinte e dois livros canônicos e raramente os
livros históricos e apócrifos posteriores. A maioria dos primeiros cristãos
aceitavam os trinta e nove livros.
Na época de Clemente de Roma e dos demais pais apostólicos,
as cartas dos apóstolos e os evangelhos considerados de autoria dos apóstolos,
ou de seus colegas mais íntimos, foram reunidos e chamados “apóstolos”,
justapondo-os com os “Profetas” da Bíblia hebraica. Sendo assim, já antes do
ano 200, vários pais e bispos da igreja estavam se referindo a uma coletânea de
escritos inspirados e autorizados conhecidos por “os Profetas e os Apóstolos” e
tratando essa massa amorfa como um critério e norma de verdade para a fé e
prática cristãs. Todavia, ainda não havia nenhum equivalente cristão da Bíblia
hebraica que tivesse o reconhecimento oficial ou fosse unanimemente aceito.
Supõe-se que a igreja deve muita coisa a um herege chamado
Marcião, um mestre cristão de grande influência em Roma. Apesar da longa
distancia geográfica que separava os contemporâneos Marcião de Montano, eles
tinham características em comum. Embora a teologia de Marcião estivesse mais
próxima a algumas formas de gnosticismo, da mesma forma que a de Montano, Marcião
considerava que a igreja necessitava de uma reforma urgente e pôs mãos à obra,
tentando redescobrir e promover o que considerava o ensino verdadeiro e
original de Jesus.
Marcião acreditava que seria necessário remover do
cristianismo todos os vestígios do judaísmo, inclusive a Bíblia hebraica e
Iavé. Para ele, o Antigo Testamento não tinha a mínima validade para os
cristãos e o Deus descrito nele era um semideus tribal sanguinário que não merecia
a adoração ou culto dos cristãos. As semelhanças entre Marcião e o gnosticismo
aparecem na sua ideia de que Iavé criou, erradamente, a matéria, e que esta é a
origem do mal. Para Marcião, Iavé era mais demoníaco que divino.
Talvez Marcião tenha sido o primeiro cristão que tentou
definir um cânon cristão das Escrituras e quis limitá-lo aos escritos dos
apóstolos que considerava livres de qualquer vestígio do judaísmo. Sua Bíblia
constituía-se de duas partes: uma versão editada do evangelho segundo Lucas e
dez epístolas paulinas.
Marcião e sua versão antijudaica das Escrituras tiveram
rápida aceitação entre alguns cristãos. Igrejas marcionitas foram surgindo em
Roma, Cartago e outras cidades. Os pais e bispos da igreja o atacaram com
severidade. “Contra Marcião” de Tertuliano é um exemplo da polêmica cristã
antimarcionista. Ireneu, também, criticou Marcião e seus ensinos em “Contra
heresias”, e outros pais da igreja dos séculos II e III fizeram o mesmo. Alguns
cristãos da antiguidade o consideravam como o arqui-herege e principal inimigo
do cristianismo ortodoxo e católico. Apesar disso, o marcionismo sobreviveu em toda
parte do império até terem suas igrejas fechadas pelos primeiros imperadores
cristãos.
Por volta de 170, a igreja cristã de Roma reagiu com o “Cânon
Muratório”. Este alistava os quatro evangelhos, Atos e os demais livros
contidos no Novo Testamento, conforme a definição que existe ainda hoje, exceto
Hebreu, Tiago e 1 e 2 Pedro. Incluía ainda, A Sabedoria de Salomão, mas excluía
o popular e influente “O Pastor de Hermas”. Tal Cânon representa um passo
crucial no desenvolvimento da vida organizacional da igreja. Embora sua lista
não seja a da versão definitiva, contribui para o pensamento cristão ficar
tomado pela ideia de uma Bíblia cristã e deixou claro que não excluiria as
Escrituras hebraicas, nem estaria aberta para incluir toda e qualquer nova
profecia ou escrito supostamente inspirado.
Sempre ouve debates a respeito dos critérios usados para
basear e reconhecer certos escritos como autorizados e inspirados. Os livros e
as cartas precisavam ser produtos do cristianismo primitivo, amplamente
reconhecidos por todas as igrejas cristãs como uma reflexão da autoridade
apostólica e como uma apresentação de verdades importantes para a salvação e o
viver cristão.
Como comentado em postagens anteriores, os pais da igreja,
como Ireneu, Tertuliano e Orígenes, criaram suas listas de Escrituras cristãs
que, de certa forma, variavam um pouco do Cânon muratório e entre si. Todavia,
apesar das diferenças, suas listas apresentavam muitas coincidências.
Os principais debates giravam em torno de Hebreus, 1 e 2
Pedro, Judas, 3 João, Apocalipse, Tiago, O Didaquê, O Pastor de Hermas e a
Epístola de Barnabé. Paulatinamente houve o consenso de que todos os escritos
da primeira lista – de Hebreus a Tiago – deviam ser incluídos por causa de seu
amplo uso em todas as igrejas cristãs e por causa de sua ligação com os
apóstolos. Judas foi aceito finalmente, segundo parece, somente por causa da
tradição amplamente aceita de que o autor seria irmão de Jesus.
Os passos finais do processo formal de canonização e criação
do Novo Testamento foram dados no século IV. Dois sínodos foram convocados na
África do Norte: Hipona (393) e Cartago (397). Ambos aprovaram a lista de
Atanásio como definitiva e autorizada.
A insensatez de julgar que o Deus do Antigo Testamento não é
o mesmo Deus do Novo Testamento anula o entendimento humano para esta e outras
passagens: “E, não achando o seu corpo, voltaram, dizendo que também tinham
visto uma visão de anjos, que dizem que ele vive. E alguns dos que estavam
conosco foram ao sepulcro, e acharam ser assim como as mulheres haviam dito;
porém, a ele não o viram. E ele lhes disse: Ó néscios, e tardos de coração
para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura não convinha que o Cristo
padecesse estas coisas e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, e
por todos os profetas, explicava-lhes o que dele se achava em todas as
Escrituras” (Lc 24:23-27).
Que
o Senhor nos abençoe e nos guarde.
Monteiro
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