A Teoria de Ireneu Sobre a Redenção
A contribuição de Ireneu foi rotulada de “teoria da
recapitulação”, proveniente de um termo latino que significa “cabeça”. Ireneu
não pensava na cabeça no sentido literal, mas como a fonte ou origem de alguma
coisa, como a cabeça de um rio ou córrego. Em “Contra Heresias” e em
“Demonstração da Pregação Apostólica” Ireneu expôs o que acreditava ser o
ensino apostólico a respeito da obra de Cristo na redenção: prover uma nova cabeça
para a humanidade, a recapitulação.
Os gnósticos pensavam na obra de Cristo sob um prisma
puramente espiritual e negavam a encarnação. Para eles, Cristo, o redentor
celestial, nunca teve uma existência humana. A cristologia gnóstica não
requeria a encarnação. A missão de Cristo era simplesmente revelar uma mensagem
aos espíritos. A dimensão material e a física não se relacionavam. Quando Jesus
foi crucificado, Cristo não estava nele, nem com Ele. Segundo os gnósticos, a
vida e a morte do homem Jesus não desempenhou nenhum papel na redenção.
Ireneu procurou demonstrar que o evangelho da salvação
ensinado pelos apóstolos e retransmitido centralizava-se na encarnação, a
existência humana do Verbo, o Filho de Deus, em carne e osso. Enfatizava todos
os aspectos da vida de Jesus como necessário para a salvação. A obra de Cristo
em nosso favor foi muito além de seus ensinamentos, estendeu-se à própria
encarnação. Esta é redentora, e não meramente um passo necessário em direção
aos ensinos de Cristo, ou ao evento da cruz. Pelo contrário, a humanização do
Filho de Deus, o Verbo (Logos) eterno experimentando a existência humana é o
que redime e restaura a humanidade caída se ela se permitir.
Se Jesus Cristo não fosse verdadeiramente humano e divino, a
salvação seria incompleta e impossível. Portanto, a encarnação é
transformadora, ela iniciou o processo de inverter a corrupção do pecado que
causa a alienação de Deus e a morte. A recapitulação era a expressão teológica
que define o modo como a encarnação física do Verbo em Jesus Cristo opera para
transformar a humanidade, a qual “nasce de novo” na encarnação. Ela recebe uma
nova cabeça, uma nova fonte, origem ou base de existência, que não é caída,
mais pura e saudável, vitoriosa e imortal. Está “plenamente viva”, tanto física
quanto espiritualmente.
Ireneu acreditava na solidariedade da humanidade tanto no
pecado como na redenção. Essa suposição é desconhecida de muitos cristãos
modernos, que tendem a pensar e a viver de modo muito mais individualista,
senão atomista. Ireneu e seus colegas da igreja primitiva não eram cristãos do
tipo “Jesus e eu”. Ele cria e ensinava que o que Adão fez, e o que Jesus fez,
afetou automaticamente os outros seres humanos, porque Adão e Cristo não são
simplesmente indivíduos, mas nascentes da humanidade.
Essa ideia se baseia em Rm 5. Se não compreendemos essa
passagem bíblica tão importante, fica impossível entender o que Ireneu ensinou.
Cristo no sentido literal é o segundo Adão da raça humana e nEle Deus
recapitulou em si a formação antiga do homem, para que pudesse eliminar o
pecado, destituir o poder da morte e vivificar o homem. Toda a humanidade
descende do primeiro Adão. Portanto, para inverter a queda e renovar a raça que
caiu por causa de Adão, o Verbo teve que viver nela para transformá-la.
Para o homem ser salvo, é preciso que o primeiro homem, Adão,
seja trazido de volta à vida, e não simplesmente que o novo e perfeito homem,
sem nenhuma relação com Adão, apareça na Terra. Deus, que tem vida, precisa
permitir que sua vida entre em “Adão”, o homem que realmente sente fome e sede,
come e bebe, fica cansado e precisa de repouso, que conhece a ansiedade, a
tristeza a e alegria, e que sente dor quando é confrontado com a morte. Sem a
encarnação, Cristo não poderia ter invertido a queda de Adão, e a redenção não
seria levada a efeito.
Quando Satanás abordou Eva e Adão, eles foram conquistados e
caíram. Assim, o ponto crucial da redenção aconteceu no momento da tentação de
Satanás no deserto, quando Satanás aproximou-se de Adão, de novo, em Cristo,
ele foi vencido e abatido, e a humanidade mediante a aliança com Cristo
conquistou uma grande vitória e recuperou a vida.
Se a tentação foi o ponto crucial, a cruz e a ressurreição
foram o ponto culminante da obra de Cristo na recapitulação. Ao morrer em
obediência ao Pai, o Filho fez o sacrifício supremo e conquistou a morte. O que
participa da nova humanidade de Cristo escolhendo Ele, e não ao primeiro Adão,
como sua cabeça, pelo arrependimento, pela fé e pelos sacramentos, recebe a
transformação que se tornou possível pela encarnação. Ele entra para uma nova
humanidade (de uma nova raça) com esperança de compartilhar a própria natureza
divina e imortal de Deus.
A redenção foi uma restauração da criação, e não uma evasão desta.
Foi o processo de inversão da corrupção que invadiu a criação por meio da queda
de Adão e o fim desse processo é a entrada do homem em uma vida não mais
sujeita às limitações da existência gerada; uma vida na qual, de fato, as
responsabilidades da condição de criatura são sobrepujadas pela graça de Deus.
Essa vida é caracterizada pela incorruptibilidade originada e causada pela
visão de Deus e pelo reflexo de Sua glória no próprio homem. Ireneu claramente
concebia a salvação como a transformação dos seres humanos em participantes da
natureza divina (2Pe 1:4). Essa ideia da redenção é conhecida como
“divinização” ou “deificação”.
O propósito de Deus na redenção é inverter o pecado, a
corrupção e a morte, introduzidos na humanidade por Adão, levando a humanidade
à vida e à imortalidade. A encarnação oferece essa possibilidade ao fundir a
humanidade com a divindade. Os seres humanos podem ser divinizados pela
solidariedade com Cristo, sem deixarem de ser humanos e sem se tornarem o
próprio Deus. Depois da reforma, a maioria dos protestantes rejeita essa ideia
ou a negligencia em favor do conceito mais forense e individualista da
reconciliação pessoal com Deus.
Lógico que a salvação é individual. No entanto, todo o
processo foi realizado pensando na transformação da humanidade, e essa
transformação defendida por Ireneu está à disposição de tantos quantos a
desejarem. Afinal, o sacrifício de Cristo foi a favor de todos os pecadores. “Esta
é uma palavra fiel, e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao
mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1:15).
Que o Senhor nos abençoe e nos guarde.
Monteiro
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